terça-feira, 16 de outubro de 2012

POSSIBILIDADES PARA ENTENDER O CURRÍCULO ESCOLAR

A discussão sobre o conhecimento escolar pressupõe, na maioria das vezes em que é realizada, uma tomada de posição em relação ao que se entende por currículo. Nesse sentido, há diferentes caminhos a serem seguidos. Podemos começar lançando mão da etimologia da palavra currículo. Com isso, encontramos em Goodson (1995) a discussão sobre etimologias, epistemologias, e o emergir do currículo, em que o autor observa que "a palavra currículo vem da palavra latina scurrere - correr - e se refere a curso ou carro de corrida. As implicações etimológicas são que, com isso, o currículo é definido como um curso a ser seguido ou, mais especificamente, apresentado" (p. 31).
O interessante nesse texto é que o próprio Goodson alerta-nos para o fato de que, na visão de currículo que decorre da etimologia da palavra, é impossível separar a idéia de currículo de conteúdo prescrito. Nas palavras do autor, "o vínculo entre currículo e prescrição foi, pois, forjado desde muito cedo e, com o passar do tempo, sobreviveu e fortaleceu-se" (p. 31). De fato, sua análise leva-nos a concluir que, ao associarmos currículo a pista de corrida, ficamos limitados a uma visão de currículo que o toma como rota, trajetória, um curso a ser realizado, que pressupõe etapas, seqüências, estágios, séries, níveis, padrões, comportamentos a serem garantidos na realização de tal curso ou trajetória. Nesse caso, é impossível dissociar currículo de prescrição, receita, manual, veículo, parâmetros norteadores ou algo parecido. Em certo sentido, aqui, currículo confunde-se ou reduz-se a programas, relação de temas, ementas de disciplinas, proposta ou grade curricular, manuais didáticos ou qualquer outro texto que contenha uma proposta prescritiva de conteúdos e metodologias a ser seguida. Essa visão, ainda muito presente entre os educadores brasileiros, apresenta a idéia de currículo como algo identificável (Qual o currículo da escola?), um objeto em si, que tem existência própria, objetiva, que pode ser implantado, que atua de maneira causal sobre as pessoas; currículo como aquilo que está escrito no papel, que tem a pretensão de formar os sujeitos em consonância direta com o que está proposto. Mesmo considerando pertinente essa possibilidade de se entender o currículo, quero problematizá-la com a intenção de tirar o foco da idéia de currículo como documento e colocá-lo na idéia de currículo como redes de saberes e fazeres dos sujeitos que praticam, de diferentes modos, os múltiplos espaços e tempos das escolas. Sem desconsiderar que os documentos prescritivos existem e ocupam lugar de destaque em várias escolas, sobretudo com os PCNs, estou assumindo o currículo como algo para além do texto prescrito. Ou seja, penso currículo como redes de fazeres e saberes, produzidas e compartilhadas nos cotidianos escolares, cujos fios, nós e linhas de fuga não se limitam a esses cotidianos, prolongando-se para além deles nos diferentes contextos vividos pelos sujeitos que praticam e habitam, direta ou indiretamente, as escolas, isto é, professores, alunos, serventes, pedagogos, pais, secretárias, vigias, coordenadores, diretores, membros das comunidades, entre tantos outros.
Alves e colaboradores (2002) ajudam-me a defender a visão aqui proposta ao afirmar que "existem muitos currículos em ação em nossas escolas, apesar dos diferentes mecanismos homogeneizadores" (p. 40). Assim, tomar como referência do currículo essa diversidade de interações, saberes e fazeres realizados nas redes tecidas no cotidiano escolar implica assumi-lo como permanente devir, como permanente produção, que se diferencia e que se realiza a partir das próprias redes compartilhadas pelos sujeitos. Mais do que documentos prescritos, o currículo que se realiza na escola é aquele viabilizado pelas redes que lá estão. Logo, não existe um único currículo na escola, mas inúmeros currículos-redes, metamorfoseados, plurais, complexos, heterárquicos e impossíveis de ser apreendidos em sua totalidade. Quando muito, conseguimos apenas identificar e viver alguns de seus fragmentos. Gimeno Sacristán (1995) também se aproxima dessa idéia quando contrapõe currículo real a declaração de intenções. Ao defender a necessidade de deslocamento do foco anterior, o autor conclui que a cultura escolar é mais do que conteúdos propostos em um documento curricular. "Uma análise refinada da realidade escolar e das práticas cotidianas torna claro que aquilo que os alunos aprendem no contexto escolar - e aquilo que deixam de aprender - é mais amplo que a acepção de currículo como especificação de temas e conteúdos de todo tipo. Isto é, o currículo real é mais amplo do que qualquer 'documento' no qual se reflitam os objetivos e planos que temos" (p. 86). Currículo não é, portanto, declaração de áreas, conteúdos e metodologias, porém, como afirma o autor, "a soma de todo tipo de aprendizagens e de ausências que os alunos obtêm como conseqüência de estarem sendo escolarizados" (p. 86). Pensar os currículos de uma escola pressupõe, então, viver seu cotidiano, que inclui, além do que é formal e tradicionalmente estudado, toda uma dinâmica das relações estabelecidas. Ou seja, para se poder falar dos currículos praticados nas escolas, é necessário estudar os hibridismos culturais vividos nos cotidianos. Nesse sentido, Gimeno Sacristán (1995) adverte que "uma coisa é o currículo considerado como uma intenção, um plano ou uma prescrição que explica o que desejaríamos que ocorresse nas escolas, e outra é o que existe nelas, o que realmente ocorre em seu interior. O currículo tem que ser entendido como cultura real, que surge de uma série de processos, mais que como objeto delimitado e estático que se pode planejar e depois implantar" (p. 27). Implicações da visão de currículo proposta para a educação e para a prática pedagógica A visão de currículo aqui esboçada implica alguns aspectos que merecem ser destacados. O primeiro deles decorre da mudança de foco do documento prescrito para a prática pedagógica na caracterização do currículo, que tem por objetivo assumir os sujeitos cotidianos das escolas como protagonistas do currículo escolar. São esses sujeitos os principais responsáveis pela realização dos currículos. O segundo aspecto a ser considerado é que qualquer iniciativa de se pensar ou de se discutir o currículo escolar precisa garantir a participação direta e insubstituível desses sujeitos. Um envolvimento que precisa ser assegurado a partir da garantia de condições políticas, físicas e materiais de realização dos currículos e em todos os momentos de sua discussão, sobretudo no decorrer das práticas pedagógicas. Assumir os sujeitos praticantes da escola como uma das bases para a idéia de currículo aqui proposta implica, ainda, defender uma visão otimista em relação às pessoas comuns, cotidianas, investindo-as de força, potencializando-as diante dos fatos da vida cotidiana, como nos tem ensinado Certeau (1996). De modo geral, as discussões instituídas pelos sistemas de ensino sobre o currículo atestam um desconhecimento das escolas e de seus sujeitos, pois, na maior parte dos casos, essas discussões não consideram a diversidade de saberes e práticas cotidianas existentes e não pressupõem tais práticas e saberes como tecidos em meio aos movimentos da complexidade do campo educacional e, por efeito, das escolas. Linhares e Garcia (2001) observam que "é preciso nos desvencilharmos de crenças que nos faziam ver, por tanto tempo, apenas a feiúra, a incompetência e a falta de sentido da escola. Quando vamos a campo investigar as escolas e nos pomos a observar a complexidade que se revela no cotidiano escolar, começamos a ver a riqueza do processo ensino-aprendizagem, a teoria em permanente movimento de atualização, a repetição que se mostra recriação, a reinvenção a cada dia da escola" (p. 45). Pensando, então, nas escolas e em seus sujeitos a partir da complexidade e dos movimentos do campo educacional, posiciono-me, como as autoras, contra o "olhar que busca erros - tão presente em nossos processos de avaliação - que faz da educação um campo muito afeito aos processos de vigiar, corrigir e punir, alimentando exercícios de controle e a exacerbação de personalidades autoritárias" (p. 45).
Em vez de destacar o erro, o que não foi feito, o que falta, quero destacar o que tem sido feito, por que tem sido feito e como tem sido feito. Isso leva, na discussão do currículo, a uma postura teórico-metodológica que vai ao encontro de uma sociologia das práticas cotidianas concretas, ou seja, uma postura que valoriza os saberes e as práticas dos sujeitos das escolas e encara o cotidiano como locus privilegiado da discussão curricular. Desse modo, vamos encontrar na literatura educacional as idéias de currículo no cotidiano (Alves et al., 2002), currículo real (Gimeno Sacristán, 1995), currículo praticado (Oliveira, 2003), currículo realizado (Ferraço, 1999, 2005), entre outras, que têm sido propostas com a intenção de se destacar os cotidianos das escolas como pontos de partida e de chegada para se pensar o currículo. Mais do que isso, essas propostas têm em comum o fato de apostarem na escola e em seus sujeitos como protagonistas e legítimos autores das possibilidades de intervenção na realidade. Essas propostas colocam-se na contramão de uma visão de escola que a considera como museu imaginário de diversas culturas, como se fosse possível apreciá-las e colecioná-las através de datas comemorativas, personagens da história ou da cultura, costumes próprios de determinados povos ou qualquer outra tentativa de prescrição curricular que se aproxime de uma perspectiva multicultural reducionista. De fato, pensados como sujeitos híbridos nesses entrelugares culturais que são as escolas, alunos e educadores praticam currículos que não se deixam aprisionar todo o tempo por identidades culturais ou políticas, originais ou fixas, e que ameaçam, em alguns momentos, o discurso oficial de uma proposta única e coerente para todo o sistema, abrindo brechas que desafiam o instituído. Por essa razão, o foco de minhas propostas prioriza os fazeres e saberes dos praticantes do cotidiano, assumindo-os como possibilidades fundamentais e únicas para a defesa da idéia de complexidade proposta por Morin (1990). Na verdade, estou defendendo que somente com o cotidiano das instituições educacionais é possível encontrar indícios que nos ajudem a sustentar a idéia de complexidade da educação, permitindo-nos questionar se existe algo objetivo e passível de ser identificado que possa ser chamado de currículo. Em minhas argumentações, tenho sustentado que as questões de interesse e significado para os sujeitos das escolas são questões do cotidiano intensamente praticado, das necessidades do presente, do vivido no dia-a-dia. É como se o futuro fosse antecipado para o momento da ação. Não há, nesse sentido, qualquer alusão ao imediatismo ou à superficialidade da educação por parte de alunos e educadores. Pelo contrário, a luta deixa de ser apenas por ideais futuros para se tornar uma luta diária, no chão das escolas, a partir das condições e dos contextos concretos nos quais os sujeitos atuam na realização dos currículos.
Carlos Eduardo Ferraço é doutor em Educação e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). e-mail: ferraco@uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário